segunda-feira, 5 de novembro de 2012

A longa e brutal jornada de um caminhoneiro até um porto no Brasil

05/11/2012 - Folha de São Paulo

DA REUTERS

Quando o caminhoneiro Marcondes Mendonça, 27, inicia a viagem para transportar milho do Centro-Oeste do Brasil até o porto de Santos (SP), no litoral paulista, ele reza para ser protegido dos buracos nas rodovias e dos motoristas alucinados, e pensa com terror nos lamentáveis banheiros que precisará encarar durante os sete dias de estrada.

O gargalo da infraestrutura é um dos maiores desafios enfrentados pelo Brasil, sexta maior economia mundial, com chances de desbancar na temporada 2012/13 os EUA, líder mundial na produção de soja.

Ele também se prepara para outros inconvenientes: congestionamentos, atrasos no porto e uma burocracia que cada vez mais atrapalha o fluxo de bens e serviços no maior país da América Latina.

Jornada de um caminhoneiro até um porto no Brasil

Caminhoneiro prepara refeição em sua cozinha móvel, enquanto aguarda para descarregar cereais no terminal da ALL (América Latina Logística)
Neste contexto de aumento de produção e logística deficitária, os transportadores avaliam que o preço do frete rodoviário deve crescer cerca de 30%.

A escassez de caminhoneiros e uma nova lei que determina períodos mínimos de descanso para esses profissionais também colaborarão para o aumento dos custos da nova safra, já que o tempo de viagem crescerá.

Mendonça, o jovem caminhoneiro, pai de dois filhos e fã de música sertaneja, trabalha para uma cooperativa de frete e faz bico como instrutor para futuros colegas.

"Que Deus nos proteja", diz ele, com a voz impondo-se a um chiado do freio a ar do seu veículo.

A reportagem seguiu com o veículo por 1.600 dos 2.100 quilômetros da viagem, percorrendo muito asfalto danificado, lembranças de acidentes mortais e refúgios noturnos com espaço para um último caminhão.

A viagem começou em Mato Grosso e atravessou outros dois Estados até chegar ao porto de Santos.

Nesse percurso, Mendonça enfrentou condições conhecidas por qualquer caminhoneiro brasileiro --longas jornadas de trabalho, solidão, comida ruim.

O custo do frete nesse trajeto representou quase 40% do valor pelo qual a carga de 37 toneladas de milho foi negociada em Santos.

Para percorrer uma distância semelhante nos EUA, principalmente sobre barcaças, o custo seria de apenas 10% do valor da carga.

Mesmo percorrendo distâncias semelhantes, o transporte de produtos no Brasil também pode demorar três vezes mais do que na China, país que tem usado seu sucesso econômico para investir maciçamente em estradas, ferrovias e portos.

"A logística está congestionada", disse Glauber Silveira, produtor de Mato Grosso e presidente da associação dos sojicultores do Brasil, que perdem um quarto do seu faturamento com o transporte. "O comprador está perdendo, e o produtor também."

Com o vasto território, abundância de água e fazendas de alta tecnologia, o Brasil é o maior produtor mundial de açúcar, café e suco de laranja, além de liderar a exportação de carne bovina e de frango e estar prestes a se tornar o maior em soja.

Mas a vantagem que o Brasil costumava ter em termos de custo está sucumbindo ao preço do transporte.

O frete da fazenda ao porto já custa no Brasil mais do que o dobro do frete marítimo até a China, e essa relação está crescendo rapidamente por causa do pagamento de melhores salários aos caminhoneiros e da entrada em vigor da lei que exige descanso mínimo para eles.

Por causa dessa elevação de custos, os negociantes de produtos agrícolas estão sendo obrigados a pagar mais pela soja brasileira só para garantir a continuidade das lavouras.

Caso os preços se aproximem demais do custo, isso irá desincentivar "seriamente" a produção brasileira, segundo Kona Haque, analista do Macquarie Bank.

A presidente Dilma Rousseff divulgou recentemente planos para atrair US$ 66 bilhões em investimentos privados para estradas, ferrovias e outras instalações.

Eles incluem o prolongamento de uma rodovia até um terminal fluvial no rio Tapajós, afluente do Amazonas --apesar de ter alguns dos maiores rios do mundo, o Brasil realiza pouco transporte fluvial de cargas.

Essa nova ligação oferecerá, a partir de 2014, uma redução de 900 quilômetros no trajeto até o Atlântico, mas a capacidade das barcaças ficará limitada por causa da pequena profundidade dos rios.

FORA DOS TRILHOS

Da cabine do caminhão guiado por Mendonça, descortina-se uma visão privilegiada do abismo que separa as ambições de primeiro mundo do Brasil das condições bem mais modestas da vida real.

A viagem teve início na segunda-feira em Rondonópolis, entreposto logístico no sul de Mato Grosso. A essa altura, Mendonça já havia passado três dias em viagem até uma cidade, mais ao norte, onde lotou suas duas carretas com milho.

De Rondonópolis, ele seguiu para o sul. Rosários de contas pendiam do espelho retrovisor, acompanhando cada balanço do caminhão.

Três horas depois da partida, o caminhão chegou a Alto Araguaia, onde a jornada de Mendonça já poderia terminar. Lá, a empresa América Latina Logística opera uma ligação ferroviária direta até Santos.

Cada trem da companhia, com 80 vagões, pode transportar o equivalente a 230 caminhões articulados como o de Mendonça, mas consumindo o mesmo diesel que apenas 40 carretas.

No entanto, a demanda elevada depois da safra faz com que os trens fiquem lotados, e os preços não compensam muito, segundo os produtores.

Além disso, o transporte por trem leva o mesmo tempo, pois os vagões demoram muito para serem carregados nas várias paradas do percurso e descer a serra do Mar, logo antes de chegar ao porto.

A rede ferroviária brasileira, de 29 mil quilômetros, é hoje menor do que foi há 90 anos.

Como parte do seu projeto de infraestrutura, o governo Dilma está investindo R$ 22,4 bilhões para construir duas novas ferrovias importantes para atender ao cinturão agrícola. Uma delas será no sentido norte-sul, e a outra, no eixo leste-oeste.

Empresas de commodities dizem que há urgência nessas obras. Numa pesquisa feita pela Fundação Dom Cabral junto a 126 empresas que geram mais de um quarto do PIB brasileiro, a principal sugestão para a redução do custo do frete é a construção de mais ferrovias.

Os economistas têm dificuldades para quantificar o impacto da infraestrutura precária sobre a economia, mas concordam que as limitações na rede de transportes e a saturação dos portos impedem a economia de crescer de modo consistente acima de 4% ao ano --taxa necessária para que o Brasil alcançasse o status de nação desenvolvida, segundo especialistas.

A maioria dos novos projetos ferroviários ainda está a pelo menos cinco anos da conclusão.

NA BOLEIA

E assim Mendonça seguiu viagem. Antes da meia-noite, ele parou num posto com área de descanso. Dormiu num colchão no fundo da cabine.

Na terça-feira, o veículo chegou à divisa com Mato Grosso do Sul.

Mendonça contava sua história para ajudar as horas a passarem. Nascido no vizinho Goiás, ele é filho e irmão de caminhoneiros. Ávido por aprender, guiava os caminhões dos clientes pelo pátio da borracharia do seu tio.

Em 2006, mudou-se para Rondonópolis e começou a trabalhar, ganhando cerca de R$ 3.000 por mês. Engordou 24 quilos no primeiro ano que passou ao volante. Casou-se.

O trabalho é constante, mas as transportadoras têm dificuldades para encontrar novos motoristas --com o desemprego próximo do seu menor nível histórico no Brasil, os trabalhadores encontram muitas outras oportunidades em profissões menos cansativas.

"Não há banheiros nem áreas de descanso decentes, e a poeira está por todo lado", queixou-se o caminhoneiro Aguinaldo da Silva Tenório, 28, numa parada do trajeto.

Os caminhoneiros também se queixam dos perigos --roubos ocasionais e estradas ruins e congestionadas.

Com frequência, os motivos de maior preocupação dos motoristas são seus próprios colegas.

Na pressa de chegar ao porto --muitos são pagos por frete--, fazem ultrapassagens imprudentes. Muitos também usam cocaína e "rebite", uma droga derivada de anfetaminas, para se manterem acordados.

"Quando você está sonolento, resolve, mas você pode acabar causando uma grande confusão", diz o caminhoneiro Ademir Pereira, 36, que admitiu ter usado "rebite" uma vez. Já Mendonça diz que nunca consome drogas para ficar acordado.

OLHOS ABERTOS

Mais de 1.200 caminhoneiros morreram no ano passado em rodovias federais, segundo dados da Polícia Rodoviária Federal.

Para reduzir o consumo de drogas ao volante e diminuir o número de vítimas, o governo recentemente determinou pela primeira vez um período mínimo de descanso para os caminhoneiros.

Motoristas contratados por empresas, que são a maioria, agora devem passar no máximo oito horas por dia ao volante. Para os autônomos, a jornada pode chegar a 13 horas.

Na terça-feira à noite, Mendonça dormiu em outra área de descanso. Ao meio-dia de quarta, ele parou em um restaurante já no norte do Estado de São Paulo. Lá, uma funcionária elogiou a nova lei.

"Antes, a gente via os caminhoneiros entrando aqui com os olhos quase fechados", disse Nilda Pereira Alves Pinto. "Agora eles não ficam mais com tanta pressa."

Poucos discordam dos motivos da lei, mas alguns se queixam de que está mais difícil cumprir prazos, e que os custos aumentaram.

"Se não nos deixarem dirigir durante a noite, não haverá caminhões suficientes", disse o caminhoneiro autônomo Marcelo Galbati, que esperava o conserto de um pneu.

Na noite de quarta-feira, a reportagem passou por fora de São Paulo e o tráfego ficou mais pesado à medida que caminhões de todo o Brasil se afunilavam nas duas rodovias que dão acesso a Santos, a cerca de 80 quilômetros da capital paulista.

Mendonça pagou um pedágio de R$ 150, mas precisou dar uma volta e pagar de novo depois de descobrir que todas as áreas de descanso estavam cheias.

Ele já havia ultrapassado a jornada de trabalho máxima, mas não tinha onde parar.

Às 2h, quando o caminhão descia a serra em meio à Mata Atlântica, um acidente paralisou a rodovia. Uma hora depois, o veículo chegou a uma parada de descanso.

"A coisa está feia", disse uma atendente, acenando para que Mendonça tentasse a sorte buscando uma vaga para estacionar, após 20 horas ao volante.

Na manhã de quinta-feira, Mendonça esperava autorização para seguir até o terminal portuário, a 20 quilômetros dali, onde a companhia norte-americana de commodities Archer Daniels Midland Co. recebe os caminhões com grãos para então despachar o produto em navios.

O porto é famoso por sua burocracia e não dá conta do crescente volume de carga que recebe.

Só depois das 16h o terminal ficou disponível para Mendonça. A essa altura, porém, descarregar significaria ir embora do porto bem tarde, e novamente enfrentar dificuldades para achar uma área de repouso.

Por isso, Mendonça decidiu dormir na área de espera do terminal.

Só na manhã de sexta-feira, quase uma semana depois de deixar Rondonópolis, Mendonça conseguiu finalmente levar o caminhão para uma plataforma e descarregá-lo, a poucos metros dos navios que iam sendo enchidos com grãos com destino a outros continentes.


Enviado via iPhone